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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Diz que é uma espécie de currículo IV

 De facto, a rádio…

A rádio estava escondida na proposta do Sérgio Figueiredo que em 1997 me levou para o Diário Económico. O jornal pertencia a Miguel Paes do Amaral, juntamente com o Independente, Grupo Media Capital, e Sérgio Figueiredo tinha o projecto de construir, a partir do Económico, uma redacção multimédia para jornal, rádio e TV. Cheguei a fazer o projecto de conteúdos para uma estação de rádio, em cima da data para concorrer a determinada frequência de radiodifusão. Um administrador anunciou à redacção:
- Ganhámos a frequência de rádio, o que ficamos a dever ao João Paulo Guerra.
Ao que respondi que só ficavam a dever se não quisessem pagar e de facto não deram sinal de querer. 


O projecto continuou a crescer, embora com muitas hesitações e recuos, principalmente quando o Sérgio deixou a direcção e se instalou com um escritório no Rossio. E muita gente passou por ele no Rossio. Os administradores delegados para a rádio na Media Capital não quiseram encarar a hipótese de criar a primeira rádio na internet em Portugal e ficaram presos a uma frequência com pouco alcance e desfocada em relação ao habitat de uma população interessada numa rádio de informação económica. E um dia o administrador delegado convocou-me para me anunciar que não pensavam em mim para director da rádio mas… Mas tinham um cargo que certamente me interessaria: consultor japonês!!!

No Diário Económico fui editor do noticiário nacional, redactor-principal, grande-repórter – voluntariamente reportei todas as campanhas eleitorais autárquicas enquanto lá estive e, também como voluntário, fui para Timor em Setembro de 1999. Ou melhor, fui para Darwin, no litoral norte da Austrália; para Timor desenrasquei depois uma viagem no voo que transportou uma equipa de médicos búlgaros. 
E de lá reportei a cidade de Díli deserta e o regresso dos timorenses às suas ruínas fumegantes, a vida em Dare, na montanha dos timorenses refugiados, e em Ermera, a região do café de Timor saqueada pelos capatazes dos ocupantes e depois arrasada, obrigando os timorenses a começar de novo. No regresso juntei todas as crónicas que enviei de Darwin e de Dili num texto único, acrescentando um capítulo à reedição que saiu em 2000, pelo Circulo de Leitores, de O Regresso das Caravelas: Viagem ao fim do império.
Banco em Díli incendiado e saqueado
Quando estive em O Diário, escrevi reportagens sobre os desertos da Ásia Central, e sobre Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné, Costa do Marfim, os Congos e o Egipto. Pela Emissora Nacional, em 1974, reportei de Bissau e das zonas ocupadas pela guerrilha na Guiné, em Canjambari, bem como a saída dos movimentos emancipalistas da clandestinidade em Cabo Verde. E de todas essas andanças pela lusofonia nunca hei-de esquecer o Luís Lázaro, que conheci no Hospital Central de Maputo, em 1988:

O Luís Lázaro
“O Luís Lázaro é três anos de gente e tem um braço, o direito, com fracturas múltiplas e expostas. Nos olhos, o Luís Lázaro tem o espanto de todas as perguntas sem resposta, porque o Luís Lázaro não faz as perguntas que fazem os miúdos de três anos e porque não há respostas para as perguntas dos olhos deste miúdo de fraldas, ligaduras e aparelho de gesso. Porquê?
(…)
Que me desculpem a emoção, que é coisa que não está prevista nos manuais de jornalismo. Mas quem é que quer saber dos manuais de jornalismo diante do corpo mutilado de uma criança de três anos?

Ateliê de Malangatana nos arredores de Maputo
Pela TSF estive nas primeiras eleições de Cabo Verde, da Guiné e de Moçambique. E como há mais vida, para lá da política, aproveitei para entrevistar o poeta cabo-verdiano Oswaldo Osório, o cantor Ildo Lobo e os músicos de Os Tubarões, o cineasta guineense Flora Gomes e o pintor moçambicano Malangatana. 
Mas foi pelo Diário Económico que viajei até ao Fim do Império e registei as palavras de um padre católico, Hermenegildo de Deus, da diocese de Díli:
"É difícil dizer a uma mãe que perdeu todos os filhos que, quando se leva uma bofetada, devemos dar a outra face". 
A casa dos jornalistas na área de Motael, Díli
Em Timor, com a cidade de Dílli em ruínas, vivi numa casa abandonada que fazia parte da clínica de Motael, com outros jornalistas - Jorge Araújo e Ana Baião (Independente), Luciano Alvarez e João Pedro Henriques (Público), Mário Ramires (Expresso), Leonel de Castro (Jornal de Notícias) e eu próprio. Uma casa "guardada" por um enorme crocodilo mergulhado num tanque coberto com uma grade poderosa; era mais uma atração turística, não havia patrulha militar que não parasse para ver o crocodilo.  
Deixei Díli com os habitantes regressados às suas ruínas, naquela ilha rodeada de dor por todos os lados. A derradeira imagem que conservo é a de crianças no bairro de Comoro que perderam toda a família na onda de violência de Setembro de 1999 e que foram acolhidas pelas irmãs Carmelitas. Cantam, quando passo por elas a caminho do aeroporto. Cantam uma cançaõ que fala do sofrimento de um país de montanhas rodeado de mar, um país a construir. Chamam-lhe Timor Lorosae. 

Em Díli, como enviado de um jornal que saía de segunda a sexta, senti como nunca a importância da rádio. Assistira em Portugal a poderosas manifestações reclamando o envio de tropas da ONU para travarem o tsunami de barbárie que se abatera sobre o território. Estava em Darwin quando os navios australianos avançaram para Díli com tropas, era um sábado, o meu jornal só saía daí a dois dias e houve um momento em que eu era o único jornalista a testemunhar aquele momento. Liguei para casa e fiz a "reportagem" para a atendedor de chamadas, em Lisboa. 

No Económico, entre 18 de Outubro de 1999 e 31 de Julho de 2008 escrevi de segunda a sexta, em dado período também ao sábado, excepto quando estava fora em reportagem, os mil e tal caracteres da Coluna Vertebral. Quando saiu em livro uma compilação das crónicas da Coluna VertebralDiz que é uma espécie de democracia / Reflexões sobre um País no Divã –, Oficina do Livro, 2009, Filipe Santos Costa fez a recensão do livro no Expresso, sob o título: Crónicas do Fartote. E explicou porquê:
«Viagem a dez anos, quatro governos, muita miséria e pouca grandeza.
«Vamos a meio do livro quando o autor confessa a abundância de matéria-prima. "O poder reinante em Portugal pode ser acusado de tudo. Mas de uma coisa ninguém poderá acusar a classe política: de não ser uma permanente fonte de inspiração para articulistas, cronistas, colunistas, comentadores, analistas, críticos e humoristas. Em Portugal, hoje em dia, poderá faltar quase tudo, mas, entre o drama e a comédia, é um fartote de acontecimentos da maior originalidade."»
A Mosca picava aos sábados,
Diário de Lisboa, 1969
E concluiu: «"Diz que É Uma Espécie de Democracia" pode resumir-se como um muito democrático exercício de direitos, liberdades e garantias: o direito de pensar, a liberdade de escrever o que se pensa e a garantia de fazer bem uma coisa e outra. Sem olhar para o lado, sem fugir das palavras e sem perder a memória

Sempre fui dado à escrita e à leitura: cresci entre livros, que a minha mãe nos lia, a mim e à minha irmã, depois livros que nós líamos. E as palavras eram brinquedos na nossa infância e adolescência. Trabalhei e ganhei a vida com palavras, na rádio e em jornais. 
Do desenvolvimento de algumas investigações que fiz como jornalista publiquei livros desde os anos 80, entre os quais: 
Polícias e Ladrões (Editorial Caminho, 1983); Os Flechas Atacam de Novo (Caminho, 1988); Memória das Guerras Coloniais (Afrontamento, 1994 - 1ª edição, 1995 - 2ª edição); Savimbi Vida e Morte (Bertrand, 3 edições em 2002); Descolonização Portuguesa – O Regresso das Caravelas (Dom Quixote, 1996 - 1ª edição, 2ª edição Círculo de Leitores, 2000, reedição, revista e aumentada (Oficina do Livro, 2009); Diz que é uma espécie de democracia, crónicas (Oficina do Livro, 2 edições em 2009).
Foi a maneira que encontrei para que o meu trabalho não fosse apenas ouvido fugazmente na rádio ou lido num jornal deitado fora ao fim do dia.
Mas eis que em 2005 – ia quase em dez anos afastado da rádio e caminhava comodamente para a reforma – recebo uma chamada telefónica que despertou em mim o velho e enraizado alvoroço: o Rui Pego convidava-me para fazer parte de um painel de antigos radialistas que contariam aos microfones da Antena 1 memórias dos seus Dias da Rádio. Escusado será dizer que lhe disse que sim antes do director da Antena 1 acabar de me apresentar a sua proposta. E assim foi a I dinastia de Os Reis da Rádio: Jaime Fernandes, José Ramos, Júlio Isidro, José Nuno Martins e João Paulo Guerra. 
Bom dia e boas notícias
A despedida foi uma emissão especial em directo, por uma tarde de sábado dentro, todos no estúdio com o António Macedo a moderar, ou a espicaçar, conforme preferirem. E depois entrou em cena a II dinastia de Os Reis da Rádio: Pedro Castelo, António Santos, Cândido Mota, Paulo Fernando e Luís Filipe Costa.
A mudança de dinastias foi em 2006. Quando fui “destronado” de Os Reis da Rádio já tinha o convite do Rui Pego para fazer “uma revista de imprensa com assinatura”.
 Estava na rádio e para ficar.

(continua) 

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