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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Tudella: Cantor público e agente secreto

The Count, ou seria Aramis, um deles foi enviado a Londres, nos anos 70, com a missão de raptar um ex-ministro tanzaniano. E a missão não foi impossível

Por João Paulo Guerra
Diário Económico, Outubro 2000

Em Novembro de 1968, quando João Maria Tudella subiu ao palco do Teatro Vilaret para interpretar canções com palavras rebeldes da poesia portuguesa – José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, Reinaldo Ferreira -, pouca gente saberia que aquele era o último espectáculo ao vivo de um cançonetista que tinha atingido o ponto mais alto da maturidade e do sucesso. Por essa altura, Tudella acabara de aceitar um desafio que o levaria a mudar de vida. Tratava-se de um convite de Jorge Jardim para um «trabalho sigiloso». João Maria Tudella gravou o seu último disco, publicado no ano seguinte, depois saiu de cena e passou a trabalhar nos bastidores da alta política como agente secreto.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Reportagem de uma conspiração

A Reportagem segue 26 anos mais tarde

Por João Paulo Guerra

Repórter é o que vai ali, vem já, olhar rápido, palavra célere.
Baptista-Bastos

Em 1964, o meu chefe de redacção no RCP, Luís Filipe Costa, marcou-me em agenda, com o meu conhecimento e acordo, a reportagem do 1º de Maio. Para aquele dia anunciava-se uma concentração no Rossio e adivinhava-se o que se seguiria: carga da polícia, correrias, feridos, prisões e outros acontecimentos palpitantes. Como repórter, eu ia ser testemunha presencial dos acontecimentos, embora também fosse de prever que o meu testemunho viesse a ficar reduzido à expressão mais simples ou fosse mesmo condenado a desaparecer pela Censura.
A reportagem, o testemunho de um jornalista, significava uma visão particular dos acontecimentos, tanto quanto possível objectiva e independente. Ora o regime era incompatível com a objectividade e a independência. Mesmo assim arriscámos, o Luís Filipe Costa e eu, com o consentimento do director de Programas e de Informação do RCP, Álvaro Jorge.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Romance de uma conspiração

Amor em tempos de guerra

Mais do que uma intriga política, a estreia na ficção do jornalista João Paulo Guerra é uma história de amor. De um filho por um pai e de um homem por uma mulher. O filho e o homem são um e a mesma pessoa: Pedro Costa, segundo-tenente da Marinha, personagem principal de um romance baseado em factos verídicos que o autor mistura sabiamente com personagens ficcionadas. “Romance de uma conspiração” é também a história de um homem solidário, marcado pela tragédia de, ainda criança, ter assistido ao assassínio do pai num longínquo 1º de Maio de 1964. Da sua vida faz parte a investigação sobre a teia conspirativa internacional, que envolvia o governo português e governos estrangeiros, no «recrutamento e treino de mercenários para operações de sabotagem, atentados e guerra de guerrilhas».
E faz parte a açoriana Telma, «o amor da sua vida», de quem se viu obrigado a afastar-se. Mas também a redenção, que chegou em 1990, num palacete decrépito de La Valetta, em Malta, onde finalmente ficou frente a frente com o responsável pelo assassínio do pai. A reconciliação consigo e com as suas memórias permitiu-lhe, finalmente, voltar para quem um dia lhe disse: «Nunca mais irás sentir-te só (…) Mas esse é o meu final.
Ana Paula Gouveia, Os Meus Livros, Outubro 2010 

Ficção documentada

Este belíssimo volume, agora editado, devolve-nos o prosador admirável e atento vigilante da causa política e social. Trata, o livro, de uma sinistra ocorrência, de que o autor foi testemunha involuntária, no Portugal, mais propriamente na Lisboa da década de sessenta. E a recuperação desse tempo infausto, a que ele procede, com minúcia e inteligência crítica, lembra as sequências de um filme policial, ao mesmo tempo que nos concita a reflectir. “Romance de uma conspiração” serve-se de todos os materiais comuns a quem deseja assinalar um tempo e as suas misérias. Documento-ficção, ou ficção documentada, pelas suas páginas desfilam cenas, casos, acontecimentos e pessoas que também nos pertencem. “Romance de uma conspiração” não tem nada a ver com as aldrabices “literárias” que por aí circulam.
Dilecto: leia este texto e surpreenda-se com a estreia na literatura de um nome maior da nossa cultura jornalística.
Baptista-Bastos, Jornal de Negócios, 24 Setembro 2010

Já tenho o livro, que li de um fôlego. Apaixonante e notável livro em que a História e a Ficção se entrelaçam com um sabor muito especial.
Um cordial abraço
L.C.C.
 (Um pequeno apontamento, entretanto: 
não foi o Director Silva Pais quem tomou a iniciativa de retirar os retratos, mas creio que fui eu ao perguntar-lhe, na sequência dos protestos de adesão ao golpe de estado, porque estavam então tais fotos ainda na parede ...)


O livro está bem "travejado" e o personagem central, quem sabe, até pode aventurar-se noutras histórias, pois tem "espessura". J.G.M. 


Romance de uma Conspiração é mais do que um grande romance - é uma viagem pela História, pelas suas sombras, os seus enigmas. De onde se sai em deleite pelo que se leu, em choque pelo que se revela na ficção da realidade. 
António Simões, A Bola, 21-09-2010


sábado, 10 de janeiro de 2015

Savimbi Vida e Morte

A Longa Marcha
por Nicole Guardiola

Disse João Paulo Guerra que teria preferido que “Savimbi, Vida e Morte” tivesse sido publicado, como era sua intenção, antes da morte do fundador da UNITA (22/02/02). É compreensível: em Portugal é ainda considerado de mau gosto «dizer mal» de um defunto. O autor teve a coragem de não retocar o retrato que tinha desenhado, a traços fortes, do chefe do Galo Negro, limitando-se, no prefácio, a situar a morte de Savimbi no fim de um itinerário norteado pela conquista do poder, com a guerra como instrumento desde a independência de Angola, em 1975.
«A vida de Savimbi for de morte», escreve João Paulo Guerra. Era esse o sentido do título e o epílogo só podia ser o que foi: a «morte matada», algures no mato do Leste de Angola, onde Savimbi iniciara a sua «longa marcha». QA propaganda da UNITA faz arranca a caminhada de Savimbi do Muangai, onde a 13/13/1966 fundou a sua organização e assumiu o título de «Presidente», do qual nunca mais abdicaria. Na realidade, a luta pelo lugar cimeiro a que se considerava predestinado começara vários anos antes e explica a deambulação inicial de Savimbi pelos outros movimentos de libertação, da UPA-FNLA de Holden Roberto ao MPLA, e o «ecletismo» das suas alianças tácticas. E seria, depois do 25 de Abril, o motor das suas sucessivas «guerras» contra o poder instalado em Luanda, mudando de bandeiras e aliados ao sabor dos tempos. Só quem esqueceu as infindáveis disputas sobre o «estatuto especial» a atribuir ao líder da UNITA depois da assinatura do protocolo de Lusaka, em 1994, acabando por recusar a vice-presidência de Angola, criada para o efeito, pode omitir a importância desta «vocação» nos elogios póstumos ao criador do Galo Negro.
“Savimbi, Vida e Morte” não traz revelações inéditas mas tem o mérito de compilar e sistematizar muitos dados, dispersos por arquivos, obras publicadas e esquecidas, declarações e cartas do próprio Savimbi, ocultos sob o manto do mito. Um trabalho de referência, apoiado por uma cronologia sólida e uma bibliografia exaustiva, que corrigem muitos erros e falsificações deliberadas.
O autor não esconde que considera Savimbi o principal responsável, não do conflito angolano, mas da impossibilidade de o resolver por meios não militares. É uma opinião, embora bem documentada e partilhada muitos angolanos e estrangeiros, e mesmo por aqueles que se empenharam na procura de outras soluções. Ajuda a compreender as novas perspectivas que se abrem em Angola com a sua morte, nomeadamente para a UNITA e os dirigentes sobreviventes, que vão ter que criar o que nunca existiu em Angola: um grande partido democrático de oposição. Para essa tarefa, Savimbi não será uma ajuda, antes um exemplo a não repetir. Bertrand, 2002, 350 páginas
Nicola Guardiola, Expresso, 11 Maio 2002

        

                  Perfil impiedoso, por Celso Filipe 
João Paulo Guerra traça, no seu livro (quase todo escrito antes da morte do líder da UNITA) um perfil impiedoso de Jonas Savimbi. Coloca em causa os motivos que o fizeram entrar na luta, coleciona factos sobre a sua ambição desmedida para chegar ao poder, questiona a sua orientação política que, na opinião do autor, vagueia ao sabor dos ventos da conjuntura internacional, e recorda os muitos dos seus colaboradores que foram aniquilados ou tiveram a sorte de desertar da célebre capital da Jamba.
João Paulo Guerra não aponta uma única qualidade a Savimbi. Mas a obra tem o mérito de estar absolutamente defendida, através das inúmeras notas de rodapé e das referências bibliográficas que sustentam a sua tese. E esta, em traços gerais, resume-se aos factos de Savimbi ter servido, primeiro, o exército colonial português, depois a África do Sul e finalmente os EUA contando com o apoio de alguns países africanos, nomeadamente o ex-Zaire.
A verdade é que Jonas Savimbi se afastou do mundo diplomático, talvez porque já não tinha nada para dar em troca, tornando-se um guerrilheiro que se casou com as matas, e que foi perdendo espaço junto dos países e dos lobbies que tradicionalmente o apoiavam. A faceta de «freedom fighter» foi-se desvanecendo progressivamente, dando lugar à imagem de um déspota, sobretudo preocupado em se manter como o todo-poderoso da UNITA.
Celso Filipe, Diário Económico, 12 Abril 2002

Os Flechas atacam de novo 

Este livro é a passagem, segura e indignada, da crónica dos nossos dias a um tempo maior que é já História, momento grande da escrita de um repórter que, pela sua coragem e honestidade, pelo seu dever de cidadão na celebração pública da nossa condição humana, soube pôr ao serviço da verdade a mais notável das armas brancas: a sua escrita – escrita testemunho, conceitos, verdade.
Neste seu livro, “Os Flechas atacam de novo”, João Paulo Guerra é sobretudo o repórter da História. Eles, são os Flechas que atacam de novo, depois de terem mudado de farda.
Miguel Serrano, O Diário, 
Dezembro de 1988

Polícias e ladrões

Quem guarda 

os guardas?

         “Este é um livro de histórias sem heróis”, avisa logo de entrada o autor, não vá algum leitor ingénuo, desses que os títulos costumam seduzir, pensar tratar-se de um qualquer policial com fim moralizante de proveito e exemplo. O crime não compensa? Leiam estes polícias e estes ladrões e depois falem. São 152 páginas de excelente jornalismo, assinadas por João Paulo Guerra.          

       (…) Se o jornalismo faz história e ganha, com o tempo, força documental, para que conste, então Polícia e Ladrões é um bom exemplo dessa virtualidade disciplinar: confere à efeméride do que o jornal disse uma outra dimensão temporal.
         Do que trata o livro? João Paulo Guerra o diz, se meias tintas: “Nas páginas deste livro passam personagens que povoam um tempo português: operacionais do banditismo político e do crime comum, homens sem futuro e defensores da ordem do passado, senhores doutores do terrorismo e do crime por encomenda e marginais por conta própria».
Prepare-se então leitor para uma viagem guiada ao bas-fond da contra-revolução em Portugal (…) Com nomes, datas, cumplicidades.
Fernando Pauloro Neves, Jornal do Fundão 13 Janeiro 1984

"As armas foram todas guardadas no Comando da Polícia. E eu, por minha vez, recebi das mãos do senhor comandante da PSP do Porto a pistola-metralhadora que tinha, mais uma arma com silenciador". 
Palavras para quê? É uma "artista" português, o maior dos operacionais da rede bombista, num depoimento gravado pela Polícia Judiciária que chegou a fazer parte do célebre processo. 
É com um frémito de espanto, de incredibilidade, de emoção muito forte, que ainda hoje lemos coisas destas. Talvez por isso, trabalhos como "Polícias e Ladrões" nos toquem tão fundo, nos impressionem de tal forma que não nos dêem direito a invocar a tradicional "memória curta" do Homem.
De resto, as "histórias sem heróis" da nunca-ficção de que tomámos conhecimento através de palavras incomodativas para a maioria dos jornais, não são matéria com princípio, meio e fim. Prolongam-se no tempo, respiram ao nosso lado, passeiam-se nas ruas, falam ao telefone, acendem rastilhos, compram polícias e ladrões. 
(...) Por isso, é fundamental reler tudo em "Polícias e Ladrões", livro de João Paulo Guerra. É um daqueles trabalhos que ainda nos deixam muitas portas abertas por onde podemos, dentro de nós próprios, sair sem medo e com segurança por outros caminhos, ir mais além, juntar as peças do puzzle (...)
J. R. O Jornal, 4 Janeiro 1984

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Diz que é uma espécie de democracia



A SECRETA 

IDENTIDADE

DOS DIAS

         Por Baptista- Bastos

Fecho a leitura deste livro e recupera-se-me, na memória, a relação da História com o quotidiano, que faz de um texto a representação da época. Nunca é certo o que se vê, nunca é rigoroso o que se diz porque o fenómeno do visto e dito obedece às estruturas da interpretação. João Paulo Guerra, sobre ser um dos grandes jornalistas portugueses actuais, possui o inato talento de concentrar, comprimir, seleccionar a concepção das descrições. Em meia dúzia de linhas fornece-nos os escassos pontos e os reduzidos aspectos da «realidade», tal como ele a interpreta, e tomando este conceito com todas as precauções devidas. Porém, interpreta a «realidade» sem cair na tentação de emitir juízos afastados da confrontação entre o texto e o leitor. Quer-se dizer: o autor propõe, a quem o lê, uma cumplicidade moral, uma responsabilidade ética e uma prática estética. Não lhe «faz a cabeça»; mas sedu-lo com um estilo admirável, um pensamento livre e a exposição de um mundo pessoalíssimo. Revela, enfim, a secreta identidade dos dias. Eis o que distingue um escritor de um «autor», um jornalista de um gravador de frases.
         Percebe-se o gozo de João Paulo Guerra no trabalhar das palavras, no modelar da frase e no lançar a locução com melodia, esmero - e sarcasmo. Como os grandes moralistas do século XIX, ele sabe que teoria e desfrute, crítica e combate pertencem à disciplina do escárnio - que advoga a liberdade em norma absoluta. O tirano, o poderoso, o democrata instantâneo como o pudim flan, o filisteu, o oportunista detestam, perseguem, ameaçam todos aqueles que falam do seu egocentrismo, da sua soberba, da sua pequenez, das suas ignorâncias e das suas cobardias.  
         Ao longo dos anos, Guerra sentiu a pressão, percebeu os velados avisos, fez-se de surdo e transformou «Coluna Vertebral», comentário quotidiano, publicado no «Diário Económico», numa peça jornalística e literária fundamental para desvelar o que se oculta por detrás dos factos. Evidentemente, o autor possui uma pessoal «visão do mundo», o modo particular de examinar e caracterizar a época que lhe coube viver, e sem o qual a utilização da ironia seria inútil. Nenhuma destas pequenas crónicas pretende demonstrar os mecanismos económicos que movem a sociedade, mas, subjacente, nelas residem os antagonismos de classe, os erros do sistema que nos inculcaram como insuperáveis.
         Temos de entender o significado das palavras, as quais propõem conceitos de mundo, de comunicação dos saberes e de relação com os outros. «Diz que é uma Espécie de Democracia» sugere, desde logo, uma crítica extraída da experiência histórica que vivemos nos últimos trinta e cinco anos. E João Paulo Guerra, ao analisar os dias e as contradições políticas e ideológicas, procede à distinção entre os manipuladores de símbolos e o espaço que eles ocupam na sociedade de informação.
         A ironia dissimula, sempre, um discreto desencanto. O autor pertence a uma geração (a uma grande geração, diga-se) que se envolveu nas lutas do seu tempo sem nada pedir em troca que não fosse a alteração das estruturas sociais e das mentalidades. Renovar, constantemente, os aspectos das indignações, e integrá-los numa maior aspiração ao bem-comum parecia um sonho desmesurado - mas estava à altura dos sonhos do homem. João Paulo Guerra diz-nos, com a subtileza de quem não deseja proclamar, mas sim sugerir as nossas reflexões - diz-nos que, quando aprendíamos a viver «democraticamente», a normalização restabeleceu os velhos princípios da autoridade.
         Fecho a leitura deste livro com a alegria do leitor feliz. Aquele que entende o texto como uma interpelação à inteligência; um texto que não agride a nossa disponibilidade, e através do qual o autor estabelece, com o leitor, uma associação de ideias baseada neste simples pergunta: em que momento um indivíduo se transforma em cidadão? Não peçam a João Paulo Guerra a cobardia da neutralidade, a passividade da escrita, a preguiça fatal da «independência.» Quando se usam as palavras toma-se partido.
A cada um a sua verdade. Mas a cada um, também, a sua responsabilidade.
Baptista-Bastos, 11. Fevereiro. 2009.

Pano para mangas, por João Gobern 
   (...) Agora, com uma variação substancial, essa minha colecção de pequenos manuais da recordação útil, de História recente e de pequena cirurgia aos factos que deixaram marcas individuais ou colectivas, essa colecção, dizia eu, é reforçada a preceito com um novo volume, sugestivamente intitulado “Diz Que É Uma Espécie de Democracia”. Mais do que o título, o que nos obriga a parar é o nome do autor: João Paulo Guerra. Sem alongar razões, diria que numa profissão manchada por páraquedistas e alpinistas, num mundo em que a reforma antecipada ou é compulsiva ou desagua nas agências de comunicação, João Paulo Guerra é uma referência que se regista com prazer e com a devida vénia. Contas feitas, são mais de 40 anos de profissão, exercida muitas vezes contra ventos e marés, capazes de nos mostrar – pelo exemplo – que o rigor e o equilíbrio não podem rimar com a neutralidade e com a indiferença. Pelo contrário, requisitam a atenção técnica e a intuição educada como aliadas naturais.

 Neste livro, “Diz Que É Uma Espécie de Democracia”, o autor selecciona alguns dos momentos imperdíveis de uma crónica que, imagine-se, leva mais de dez anos, num país de fast-food editorial, em que a velocidade de rotação costuma ser impeditiva de uma ligação afectiva e efectiva com os leitores. Desde Outubro de 1999 que João Paulo Guerra assina no Diário Económico a Coluna Vertebral, que começa a ganhar-se logo no genérico. Neste volume, teve o trabalho de seleccionar o que entendeu como mais significativo entre 1920 crónicas, nada menos. E o resultado é contagiante – são memórias de todos nós, vistas e dissecadas só por um, mas um dos eleitos. É significativo que o autor divida a obra em quatro grandes capítulos, O Pântano, A Tanga, O Circo e ainda Etc., cada um correspondente a um Primeiro-Ministro diferente. Tudo em escrita fina, capaz de filtrar desgostos e ironias perante uma realidade que chega a parecer berrante, de tão colorida, mas é na essência medíocre, de tão cinzenta.
           João Gobern, Pano para mangas, Antena Um, 3 Abril 2009

Crónicas do fartote, por Filipe Santos Costa
     Viagem a dez anos, quatro governos, muita miséria e pouca grandeza.
    Vamos a meio do livro quando o autor confessa a abundância de matéria-prima. "O poder reinante em Portugal pode ser acusado de tudo. Mas de uma coisa ninguém poderá acusar a classe política: de não ser uma permanente fonte de inspiração para articulistas, cronistas, colunistas, comentadores, analistas, críticos e humoristas. Em Portugal, hoje em dia, poderá faltar quase tudo, mas, entre o drama e a comédia, é um fartote de acontecimentos da maior originalidade."
     João Paulo Guerra, jornalista há mais de 40 anos, é um desses colunistas. Há uma década que escreve sobre o "fartote", a ritmo quotidiano, no "Diário Económico". Lendo este livro com uma selecção dessas crónicas, é fácil concordar que em Portugal não faltam "acontecimentos da maior originalidade". O que muitas vezes falta - mas não a João Paulo Guerra - é o engenho e a arte de olhar para eles sem fazer vista grossa, sem dar de barato, sem banalizar. Sem perder a capacidade de se rir, espantar, indignar, questionar, interpretar, tentar perceber.

     João P. Guerra propõe-se "uma panorâmica razoável dos últimos dez anos da vida do país". Consegue mais que isso. Em textos curtos (o limite são 1700 caracteres) fazemos uma viagem a dez anos, quatro governos, muitas misérias e pouca grandeza, que começa em 1999, com a maioria-empate de Guterres ("O pântano"), passa pelos anos de Durão ("A tanga"), os meses de Santana ("O circo" - vem desse capítulo a citação no início deste texto...) e acaba com Sócrates ("Etc"). Textos irónicos, sarcásticos, clínicos, com uma perspectiva moral e um certo pessimismo servidos pelo gozo genuíno de trabalhar com as palavras.
     Não é mérito pequeno o exercício de memória que este livro nos permite, num país cuja amnésia é memorável, conforme nota o autor. Como se percebe pela organização em capítulos/governos, a política domina, povoada pelo seus personagens de opereta. Mas, mais do que recuperar grandes crises ou pequenas histórias injustamente esquecidas - quem se lembra que Guterres disse em 2001 que queria "ir às fuças à direita"? -, Guerra permite-nos dar um passo atrás e ver, através da espuma dos dias, o que permanece. Cada zoom ajuda ao plano de conjunto: os personagens que se eternizam, os discursos que se repetem, os 'casos' que não se resolvem, os problemas que se arrastam.
     "Diz que é uma Espécie de Democracia" pode resumir-se como um muito democrático exercício de direitos, liberdades e garantias: o direito de pensar, a liberdade de escrever o que se pensa e a garantia de fazer bem uma coisa e outra. Sem olhar para o lado, sem fugir das palavras e sem perder a memória. 
          Filipe Santos Costa, Expresso, 10 Abril 2009

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Memória das Guerras Coloniais

Edições Afrontamento, 1994
    


Um livro histórico
por César Oliveira

         O livro de João Paulo Guerra Memória das Guerras Coloniais faz o inventário histórico do processo, complexo e perturbador, que conduziu ao encerrar do ciclo imperial africano. Diferentemente da independência do Brasil – que ficou a assinalar o fim do segundo ciclo do império -, o desmoronamento da presença colonial portuguesa em África realizou-se num quadro de uma guerra em três teatros de operações que durou 13 anos, e no contexto de um regime de ditadura que ligou, voluntariamente, o destino da sua própria sobrevivência ao desfecho das guerras em África. Por assim ser, o fim do império implicou traumas, visões apaixonadas e, sobretudo, tabus. Este magnífico trabalho a que na contracapa se chama, impropriamente, «investigação jornalística», vem romper um tabu importante que talvez tenha medrado no «caldo de cultura» do respeito e da gratidão – que quase todos temos – pelo MFA e pelos militares de Abril que foram agentes activos no encerramento da aventura africana e que fizeram as guerras coloniais. E escrevemos que a editora chama impropriamente «investigação jornalística» ao trabalho de João Paulo Guerra porque, com essa classificação, parece querer distinguir esse trabalho de uma investigação histórica à qual é suposto ser atribuída uma qualidade «superior» a esta «investigação jornalística».


Ora o livro que apreciamos é um esforço sério, documentado, vasto e fundamentado, permitindo a análise e compreensão de um dado objectivo (as guerras coloniais), de que resultou uma narrativa clara, atractiva e suficientemente ampla, que dá, com a distanciação possível, uma visão elucidativa que acrescenta substantivamente o nosso conhecimento sobre uma temática fundamental do nosso próprio tempo. Por podermos classificar o trabalho de João Paulo Guerra exactamente do modo como acabámos de fazer, pensamos ser inadequada a a qualificação, quiçá por vontade e modéstia do autor, que «formalmente» a editora faz em relação a Memória das Guerras Coloniais. Porque pensamos que a história é, também, fundamentada com o maior rigor possível e a isenção suficiente e necessária a uma actividade e prática científica onde não é possível a neutralidade ou a assunção de verdades incontroversas e definitivas, estamos confrontados com uma investigação histórica que não utilizou o acervo documental dos arquivos como fonte, mas que combina, com felicidade, a narrativa histórica com alguma metodologia habitualmente usada pelo jornalista que João Paulo Guerra é.
         Porque, se há por aí, pelas tertúlias intelectuais e académicas, a difusão de concepções que produzem historiografia que quase não tem narrativa, que faz da «obra historiográfica» uma «coisa hermética», de difícil e, algumas vezes, dolorosa leitura, a verdade é esta: tais concepções acrescentam, seguramente, o nosso conhecimento, mas fazem-no de uma forma redutora e no pior do elitismo. Aquilo que produzem ou não chega ao público comum que quer ser informado ou, quando chega, não é lido com o prazer e com o «gozo» que nos proporciona o trabalho de João Paulo Guerra.
         Poderemos discordar ada arrumação de certos capítulos que, se estivessem arrumados por ordem cronológica dos acontecimentos, deraim, eventualmente, ainda maior clareza e facilidade de leitura a este excelente trabalho de J. Paulo Guerra.
         Só o domínio das temáticas tratadas, o profundo conhecimento da bibliografia utilizada e a preocupação de um distanciamento que não significou, para J.P.G., neutralidade, pôde permitir a escrita fluente, escorreita e atrativa deste texto. Quem não compreendeu a dinâmica essencial de u m dado período ou um determinado tema pode fazer dezenas e centenas de citações, inserir notas sobre notas e pés-de-página extensos e produzir, aparentemente, uma obra de «grande peso académico», mas que, de facto, não acrescentou nada de significativo ao conhecimento colectivo. Esta obra é o contrário disso.
         João Paulo Guerra indica também uma variada e extensa bibliografia que lamentamos estar inscrita no final de cada capítulo. É este o único reparo «de fundo» que fazemos ao autor: uma bibliografia final, ainda que por referência aos grandes subtemas tratados, seria extremamente útil e encorajadora para outras investigações. A cronologia é, também, uma importante contribuição deste trabalho.
         Enfim, e na síntese que cabe no espaço de que disponho: um trabalho importante, inovador na forma e corajoso no conteúdo, publicado no momento oportuno. Momento em que quase tudo e quase todos parecem apostados em «baralhar» par «dar de novo», isto é, para mitificar um período e uma «memória» que, quanto a nós, cada vez mais importa estudar, investigar e reavivar.
        César Oliveira, Expresso, 23 Abril 1994


Escrevo-lhe para o felicitar vivamente pelo seu livro sobre as guerras coloniais.
Era o livro que fazia falta acerca de um assunto que foi (e é) tão vital para a sociedade portuguesa. Li-o com especial interesse, visto ter sido co-autor e distribuidor de “Colonialismo e Lutas de Libertação” e dois BAC, quando havia informações escassas e a matéria era perigosa.
Apreciei a abundância e o rigor da informação e o carácter objetivo do seu texto, ainda que tomando partido, como todos nós.
Um muito obrigado, como português, pelo seu trabalho.
Nuno Teotónio Pereira, 16 Junho 1994

 Este livro admirável do jornalista João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, tem um destino marcado: mergulhar, com merecida glória, no universo das letras malditas. E por ser, no seu fulgor investigativo, um documento inapelável na clarificação das origens, índole e projectos dos vários movimentos armados de libertação, Memória das Guerras Coloniais é uma obra que devemos inscrever, sem perda de tempo, na montra de honra dos eventos comemorativos dos 25 anos do 25 de Abril. 
     Luís Alberto Ferreira, Jornal de Notícias, 5 Abril 1994

       Memória das Guerras Coloniais est ce qui existe de mieux dans le genre journalistique. Sa bibliographie est composé, apparement, à partir de sa propre bibliothèque. Certains de ses atribuitions sont fausses, mais il utilise des dossiers de presse d'une grande fécondité. De plus, il a le mérite d'avoir découvert des rapports de la PIDE, la policie politique portugaise, sur les années passées par Savimbi au Portugal. 
         L'ouvrage de Joao Paulo Guerra est une sorte de vade-mecum à l'usage d'une jeune génération qui a oublié qu'entre 1961 et 1974 tombaient en Afrique une moyenne de 630 morts chaque année dans le camps portugais (dont 70 % de metropolitans), soit, proportionnellement aux populations, incomparablement plus que les Americains au Vietnam. 
  René Pélissier, Afrique Contemporaine, 2º trimestre 1995

História e jornalismo
         Num “dossier” como este, em que se discutem a hipotética proximidade ou o hipotético afastamento entre a ficção e o jornalismo, o jornalista João Paulo Guerra tem o direito a um lugar à parte. Aqui, o jornalista invade os terrenos do historiador. E fá-lo não por brutal direito de conquista, mas porque cumpre humildemente os requisitos do “métier”. “Memória das Guerras Coloniais” é um livro de trabalho, de investigação.
         João Paulo Guerra é historiador e historiador sério. Mas a sua condição de jornalista vem amiúde ao de cima, quando descreve uma batalha, uma greve, um golpe de mão. Aí, a atenção ao pormenor que define uma situação trai o repórter que sabe que um desabafo é por vezes mais significativo do que um discurso.
“Memória das Guerras Coloniais” cumpre duplamente: a sua leitura torna-nos mais cultos e lúcidos e a sua consulta é fácil.
Torquato Sepúlveda, Público, 4 Junho 1994

O Regresso das Caravelas

3ª edição, Oficina do Livro, 2009
1ª edição, Dom Quixote, 1996

















2ª edição, Círculo de Leitores, 2000


Apresentação, 
por Ernesto Melo Antunes

O livro do João Paulo Guerra foi concebido como um painel, de cores vivas e bastante contrastantes, constituído por opiniões e depoimentos de vários protagonistas, intervenientes ou meros observadores do problema colonial ou do processo de descolonização. Aparentemente – e eu sublinho, aparentemente – o autor não exprime a sua opinião. Deste ponto de vista é, digamos, um livro neutral. E eu pergunto se será isto o que corresponde à famosa objectividade em História. Este livro, com todos os depoimentos cruzados que tem, é um bom ponto de partida para a compreensão do complexo processo da descolonização.
      O autor entendeu convidar-me, logo a mim, para apresentar o livro. Este já não é seguramente um gesto neutral. O risco era grande - e o autor certamente sabia-o - que eu entendesse a apresentação do livro não como um resumo das várias posições que nele aparecem, mas sim como uma ocasião que me era dada para desenvolver aspectos da minha visão comprometida da História. Sim, porque neste caso concreto, que é o da história da descolonização portuguesa, eu tenho uma visão comprometida, contra outras visões, também elas certamente comprometidas. Mas aqui é o livro que conta, é ele que é importante. O comentador introduz apenas uma perspectiva que vem, na melhor das hipóteses, animar o debate político ou, do meu ponto de vista, o debate político-cultural em torno deste tema.

Quero começar por destacar que a perspectiva que presidiu à questão da descolonização, no espírito dos militares que neste processo acabaram por ter um papel destacado – eu fui um desses militares – foi a convicção profunda que, com a revolução do 25 de Abril, tinha chegado o momento histórico inevitável e necessário de ruptura com o sistema colonial e, em consequência, do salto qualitativo para as independências. Contrariamente a quase todas as ideias feitas – que preferem sublinhar aspectos confusos e contraditórios de um processo que foi em si mesmo complexo, perdendo-se em aspectos acessórios ou circunstanciais - houve um pensamento estratégico que, embora combatido em muitas frentes, acabou por prevalecer. Esse pensamento estratégico foi o de que o reconhecimento à auto-determinação e independência dos povos submetidos à dominação colonial era a pedra angular do processo da descolonização.

Recordar-se-ão alguns dos que acompanharam de perto as chamadas peripécias do processo revolucionário português nos primeiros meses, a seguir ao 25 de Abril, que, em torno da questão das negociações com vista à independência de Moçambique, se levantaram polémicas e acusações gravíssimas em relação àqueles que defendiam justamente esse ponto de vista: o de que o 25 de Abril teria que ter como corolário necessário a ruptura com o colonialismo, reconhecendo sem tergiversações o direito à auto-determinação e à independência. Este pensamento estratégico teve que se afirmar abrindo caminho por entre um conjunto de posições de todos aqueles que consideravam «precipitado» o reconhecimento dos princípios da auto-determinação e da independência. Foi difícil fazer passar essa ideia e a batalha política que se travou só se concluiu com a publicação da lei 7/74, de Julho desse ano.

Curiosamente, vale aqui recordar que cerca de 20 anos depois se pôs em causa o carácter genuíno do aparecimento desta Lei. Do meu ponto de vista, não é por acaso. Refiro-me a uma declaração do Dr. Almeida Santos ao autor deste livro, dizendo-se chocado com o aparecimento desta Lei, que consagrava claramente o direito à auto-determinação e à independência, e acrescentando que o próprio general Spínola não teria tido conhecimento da publicação dessa Lei. Muitas coisas estranhas se passaram naqueles primeiros meses a seguir ao 25 de Abril, em plena revolução. Mas o mais estranho seria que uma Lei que serviu de mote a uma comunicação do general Spínola ao país não fosse do seu conhecimento. Isto explica uma outra maneira de fazer História. Eu digo que tenho uma visão comprometida da história, mas isso implica honestidade intelectual para ajuizar os factos, e não adequá-los, a posteriori, aos nossos interesses e justificações particulares.

A publicação desta Lei foi de facto um marco fundamental em todo o processo da descolonização. O que se passava até então era que a visão que nós tínhamos – nós, um certo grupo de militares com uma visão estratégica – entrava claramente em conflito com a visão do Presidente da República. O general Spínola tinha publicado um livro, «Portugal e o Futuro», que teve a importância que se sabe, como mobilizador de forças importantes na sociedade portuguesa e no meio militar para desencadear o 25 de Abril. É obviamente um mérito que não se lhe pode negar. Mas tinha, do meu ponto de vista, uma visão anacrónica da questão colonial, ao pensar que ainda era possível a constituição de uma federação de países de expressão portuguesa, quando já tinham passado treze anos de guerra, quando já se tinham aberto tantas feridas, tantos ressentimentos, tantos ódios, e quando era já perfeitamente desajustado e inadequado admitir um desenvolvimento autónomo das antigas colónias com um forte vínculo a Portugal sob uma forma federativa.

Mas havia outras visões, e já não me refiro às da ultra-direita, de certos sectores nacionalistas, que obviamente quereriam - mas nessa altura não tinham força bastante para o impor - manter a todo o custo uma situação colonial, embora encapotada sob formas mais ou menos subtis de neocolonialismo. Como havia outras posições, de sectores conservadores, de um certo tipo de cultura política, que se traduzem por questões deste género: Bom, mas as coisas poderiam ter sido feitas de outra maneira, ou não podiam? Mas a nossa ligação com África poderia ter ficado melhor adquirida, ou não? Mas os nossos interesses poderiam ter sido melhor defendidos, ou não podiam?

      E havia ainda outras vozes, vindas de sectores da esquerda que hoje é relativamente simples distinguir – mas naquela altura não era tão fácil. Refiro-me aos que reclamavam, antes de mais nada, o fim da guerra. E depois se veria. O fim da guerra já e depois vamos conversar, vamos negociar. Para dar um exemplo, e para chamar as coisas pelos nomes, foi aquilo que levou o Dr. Mário Soares em Lusaka, no princípio de Junho de 74, a iniciar as negociações com a Frelimo abraçando Samora Machel, num gesto de reconciliação, de amizade, de quase cumplicidade. Tudo parecia fácil, até porque o Dr. Mário Soares tinha defendido na clandestinidade o direito dos povos das colónias à auto-determinação e à independência. No espírito de Mário Soares, o objectivo imediato era o cessar-fogo, e depois se discutiriam as modalidades concretas de que se iria revestir o direito à auto-determinação. Surpresa grande foi para ele, e para muitos outros, o facto de Samora Machel e a Frelimo terem resistido a essa proposta. A posição dos movimentos de libertação, que pareceu a alguns de intransigência, era a de que não poderia haver cessar-fogo sem que houvesse da nossa parte - isto é, da parte dos responsáveis pela nova situação política vivida em Portugal, que se reclamavam do derrube do fascismo e de uma nova atitude perante a questão colonial – o reconhecimento prévio de que todos os contactos teriam que ser feitos em nome desse princípio pelo qual tinham lutado durante tantos anos de armas na mão.
Foto de Alfredo Cunha cedida para a capa da 1ª edição

Houve muitas surpresas, tanto à direita, como ao centro, como à esquerda. Certos responsáveis da época dificilmente entenderam a posição que alguns de nós assumíamos, perfeitamente conscientes daquilo que estava em jogo. Alguns de nós fomos mesmo acusados de traição, por defendermos uma doutrina que coincidia com a dos movimentos de libertação. Não era por acaso que coincidia. Era porque estávamos do mesmo lado da História. E isto é bom que fique dito de uma vez por todas. Não me envergonho de o dizer e de acrescentar mesmo que esse é um dos aspectos que mais honra a revolução do 25 de Abril.

Porque a revolução do 25 de Abril foi feita contra um sistema global de poder a que então – quando havia a liberdade radical das palavras, entre outras – se chamava o colonial-fascismo. Hoje as pessoas têm que ter mais cuidados semânticos mas, independentemente desses cuidados, a verdade é que no 25 de Abril houve claramente uma posição de luta global contra esse sistema de poder. E eu penso que não é possível entender a história recente deste país dissociando os dois termos desse conceito que é profundamente unitário. Haveria por um lado o fascismo, ou a ditadura, ou o fascismo à portuguesa, como outros dizem, e por outro lado o colonialismo. Não. Era o mesmo sistema de poder e de opressão.

O que quero salientar é que considero muito ligeiras e muito redutoras as opiniões dos que dizem que os militares fizeram o 25 de Abril simplesmente para acabar com a guerra. Não há dúvida nenhuma que a guerra colonial teve uma importância decisiva e determinante na formação da consciência política dos militares. Mas arrisco-me, e por muitas razões, a dizer que no espírito da esmagadora maioria do núcleo duro dos militares que conspirou e que agiu no 25 de Abril havia já uma ideia nítida do que estava em jogo. Se sublinho este aspecto é porque se tem glosado demasiado este tema em muitos meios políticos, culturais, mesmo jornalísticos: que os militares andaram a navegar sem saber muito bem em que se tinham metido. Esta ligeireza traduz-se na incompreensão que se manifesta em meios políticos civis em relação às posições que os militares tomaram quanto a certas questões da política interna portuguesa, como relativamente à questão colonial. A questão é que se os militares fossem tão desprovidos de consciência como nesses meios civis se diz, então o que teriam feito era darem meia dúzia de bordoadas em quem de direito no 25 de Abril e depois entregavam de bandeja o poder aos políticos civis que, como se viu, e como se continuou a ver durante muitos anos depois, tinham uma enorme capacidade para conduzir os destinos do país sem grandes solavancos…

Outro ponto que gostaria de deixar claro é que nunca ninguém, entre os militares responsáveis e também contra muitas ideias feitas, defendeu que a descolonização portuguesa foi uma descolonização exemplar. Não há aliás descolonizações bem feitas, pela boa e simples razão de que não há colonizações boas. Gostaria que me apresentassem alguma descolonização que não tivesse tido consequências mais ou menos dramáticas. E a origem desse dramatismo está fundamentalmente na própria essência do colonialismo. É o colonialismo, antes de mais nada, a própria fonte do drama colonial e das descolonizações. Claude Levy-Strauss dizia que a colonização foi o pecado maior do Ocidente. Foi. E por isso mesmo é que a história das colonizações é uma tragédia para os povos que as suportavam como para os próprios povos que as exerciam. Será difícil hoje, quando há uma cultura política em que há uma certa tendência para reescrever a História, perceber-se o verdadeiro significado desse «fardo do homem branco», como alguém dizia. E é um fardo que devemos saber suportar, não para andarmos vergados ao peso da má consciência pelos séculos fora mas, se isso for possível, para que constitua também um elemento de apreciação que as jovens gerações têm que fazer sobre o modo como se têm de relacionar com os povos com os quais os seus países entraram em contacto há séculos e que escravizaram durante séculos.

A colonização portuguesa foi tão má como as outras. O que não significa que não haja margem de manobra para o diálogo com os povos que foram submetidos ao colonialismo e que esse diálogo não deva ser prosseguido. Neste sentido, é capaz de ter razão Veiga Simão, embora por diferentes motivos, quando diz no livro que nos reúne aqui que a descolonização foi a maior tragédia que aconteceu a Portugal depois de Alcácer Quibir. É capaz de ter razão, não exactamente pelas razões que ele pensa, mas provavelmente pelos motivos que eu invoco.

Não tivemos a veleidade de alcançar um processo exemplar de descolonização. O que pretendemos foi que fossem exemplares, tanto quanto possível, as relações futuras entre Portugal e as antigas colónias. Porque fechado o ciclo do império nós sabíamos perfeitamente que não era possível curar de repente todas as feridas, todos os ressentimentos. Mas durante muitos anos isso não aconteceu. O diálogo entre Portugal e as antigas colónias foi uma cacofonia completa. E de quem são as responsabilidades? Não quero fazer julgamentos precipitados. Poder-se-ia perguntar se foram os acordos que foram mal negociados? É uma pista a explorar e que eu gostaria de ver discutida um dia. Em primeiro lugar, porque muitos daqueles que hoje põem em causa os acordos, na altura não tiveram uma única palavra para se oporem nem à letra nem ao espírito dos acordos. Em segundo lugar, porque eles foram de facto discutidos com a maior boa-fé e com a ideia de que eram exequíveis. Do meu ponto de vista, os acordos foram aqueles que deveriam ser feitos.

Isto levar-nos-ia a discutir a opinião daqueles que dizem que a descolonização foi a possível, conceito a que confesso que sou alérgico, porque o considero uma forma simplista de desculpabilização da nossa parte. Nós seguimos uma determinada via, não por ingenuidade ou por pensarmos que era a via mais fácil, mas porque correspondia a um pensamento estratégico. Por isso, não foi aquilo que foi possível fazer. Foi aquilo que devia ser feito.

É claro que a descolonização teve consequências negativas em muitos aspectos e o principal foi a retirada precipitada de centenas de milhar de pessoas, sobretudo de Angola e de Moçambique, a que se chamaram retornados, deixando esses países numa situação calamitosa de falta de quadros. Penso que o que vou dizer não será particularmente popular em certos meios progressistas das antigas colónias. Mas, neste caso, penso que a principal responsabilidade coube aos movimentos de libertação. Porque contrariamente à letra e ao espírito dos acordos gerou-se um clima de total repúdio da permanência dos portugueses, um clima muitas vezes de perseguição, de insegurança, de tal modo intolerável, que culminou num pânico generalizado. E nós em Portugal não podíamos fazer outra coisa senão assegurar o regresso nas melhores condições possíveis.

Conversando com responsáveis dos movimentos de libertação muitos anos depois, recolhi depoimentos que me revelaram que eles próprios tinham sido ultrapassados pelas bases. Isto é, muitos deles, naquele período difícil, nos contactos com as bases guerrilheiras, sentiram de tal forma o radicalismo das posições dessas bases que não tiveram outro remédio senão radicalizar também o seu discurso político relativamente ao antigo ocupante colonial. E que essa seria a razão fundamental da atmosfera que se gerou. Não me custa a admitir que isso tivesse acontecido por uma razão muito simples. É que aqui em Portugal, se bem se lembram, a radicalização do discurso político, de todos os partidos políticos, à esquerda, ao centro e à direita, foi também devido á necessidade dos dirigentes não serem ultrapassados pelas bases.

            No caso da descolonização, um outro factor se juntou também, e por fim, às condições e circunstâncias de todo o processo. Foi o facto das colónias, e particularmente Angola e Moçambique, constituírem a partir de certa altura peões no jogo das duas grandes potências, um campo de confrontação indirecta da União Soviética e dos Estados Unidos para alargarem as suas esferas de influência. Havia grandes interesses geo-estratégicos em jogo. No caso da África Austral, os movimentos de libertação começaram a sua luta com apoios claros, tanto políticos, como militares, financeiros e outros, por parte dos regimes comunistas e nomeadamente da União Soviética. Os Estados Unidos, que queriam contrariar essa influência, nunca souberam encontrar o antídoto eficaz. Tiveram sempre uma enorme dificuldade em compreender os fenómenos sociais, históricos, culturais que estavam na base dos movimentos de libertação. Daí que, muito naturalmente, houvesse um choque de interesses entre as grandes potências que, naquela fase, acabou por ser favorável à União Soviética.

Portugal tentou fazer compreender aos ocidentais, em particular aos Estados Unidos, que uma atitude de hostilização dos novos países independentes, pelo facto de adoptarem modelos marxistas, só ía aprofundar ainda mais o fosso entre países do Terceiro Mundo, cujos apoios estavam do lado comunista, e o Ocidente. E que essa não era a melhor forma de lhes abrir perspectivas de modo a fazerem conscientemente as suas escolhas de modelos de desenvolvimento. Mas infelizmente, na altura, os Estados Unidos não foram sensíveis a esse tipo de argumentação. Daí as consequências que todos nós conhecemos. Durante muitos anos, enquanto não se deu a derrocada do sistema comunista, esses países viveram sujeitos às orientações da ortodoxia dos regimes comunistas. Daí também as situações de confronto e de guerra. Nesse mundo bipolar, a maior parte das confrontações entre as duas grandes potências verificou-se indirectamente, nomeadamente em Angola e Moçambique, por interpostos cadáveres.

Vou terminar, pois já vai longa esta apresentação. Tentei ser tão breve, tão simples, tão sóbrio quanto possível, tendo também em conta que eu, como muitos daqueles que me acompanharam em todo este processo, tivemos de facto uma humilde participação nos acontecimentos e temos disso uma perfeita consciência. Percebemos que não podemos apresentarmo-nos hoje como protagonistas maiores do que aquilo que fomos na época em que se viveram os acontecimentos.
Ernesto Melo Antunes, apresentação da 1ª edição (1996), 
prefácio da 3ª edição (2009)



Li sem uma pausa a “Descolonização Portuguesa”, que lhe agradeço.
Empolgante, para mim, pelo retrato que dá dos generais-falcões lusitanos como Câmara Pina (pág. 41, 1ª edição), Kaúlza (para quem a derrota “é apenas uma vitória traída” (sic!), Galvão de Melo (inventor da expressão “patriotas amadores”).
Mais do que o drama da Descolonização, o que confrange é a mediocridade de um Spínola a insistir, p. ex., na “comunidade lusíada” (pág. 70, 1ª edição) e certos apontamentos de surpresa como as jogadas de Jardim (Jorge) com a Frelimo e o laço que unia Botelho Moniz à CIA.
Enfim, um documento que vale a pena reler e sublinhar.
José Cardoso Pires, 28 Fevereiro 1996


O Regresso das Caravelas foi inicialmente uma série de reportagens de rádio, transmitidas pela TSF em Abril de 1994.
Na versão original para a rádio, O Regresso das Caravelas ganhou todos os prémios de reportagem relativos ao ano de 1994:
Prémio Nacional de Reportagem, do Clube de Jornalistas do Porto,
Prémio Gazeta, do Clube de Jornalistas,
Prémio de Reportagem de Rádio, do Clube Português de Imprensa.