Políticos e politólogos, lídePolíticos de carreira ou de ocasião, fautores e fautrizes de
opinião e equiparados, jornalistas e afins, toda a gente faz cenários.
Cenógrafo de profissão, o
melhor na sua arte, Mário Alberto retribui.
Por João Paulo Guerra, Diário
Económico, 15 de Março de 2001
Fotos de João Paulo Dias
Este homem é um Senhor. Em tempos foi operário cerâmico,
empregado de escritório, recauchutador, figurante, bailarino excêntrico, músico
gestual. Mas na sua profissão, cenógrafo, e na paixão da sua vida, o teatro,
este homem é mesmo um grande senhor. Prémio de cenografia da Casa da Imprensa,
em 1971, homenageado pelo Festival de Almada, em 90, Prémio de Cenografia da
Associação de Críticos em 1994/95, os prémios dizem menos que a obra que ergueu
em cinquenta anos de trabalho para dezenas de grandes e pequenas companhias de
teatro, em todo o país. Dos grupos universitários ao teatro de revista,
passando por grupos independentes e pelo teatro comercial, até trabalhou, uma
vez, para o Teatro Nacional.
Para além do teatro fez cenografia para ópera, décors, figurinos e direcção artística
para televisão e cinema. Mas é do teatro que mais gosta. «A gente está ali a
viver aquilo tudo. O teatro até tem cheiro». Trabalhou com todos os grandes
nomes do teatro português, sobre textos de todos os grandes dramaturgos.
Regularmente expõe a sua pintura.
Nascido há 75 anos em Sá da Bandeira (Lubango), em
Angola, Mário Alberto veio para Portugal aos quatro anos e travou conhecimento
com o teatro em Coimbra. «Frequentava a escola industrial e trabalhava numa
fábrica de cerâmica quando vi as primeiras peças do TEUC, encenadas por Paulo
Quintela e Deniz Jacinto. Apaixonei-me pelo teatro», conta Mário Alberto. E a
paixão consumou-se na primeira oportunidade. «Foi quando um barbeiro de Coimbra
fundou um grupo infantil. Eu pintava cartazes e tabuletas e, com uma rolha de
cortiça queimada, fazia os bigodes aos actores». Quando, ainda na juventude,
veio para Lisboa, trazia já experiência das peças de teatro de cordel exibidas
pela trupe em Coimbra e arredores.
Em Lisboa, empregou-se a recauchutar pneus no Largo do
Andaluz e à noite fazia figuração no Teatro Avenida. Depois passou para
empregado de escritório numa companhia de navegação na Rua do Alecrim. Até ao
dia em que o director da companhia, por mero acaso, assistiu a um espectáculo
de teatro e deparou com o seu dactilógrafo em cima das tábuas do palco. «No dia
seguinte chamou-me e disse-me: Tem que
escolher: ou esta companhia, que é uma companhia séria, ou os fantoches».
Mário Alberto não hesitou. «Fui para os fantoches».
Nessa época, anos 40/50, o teatro tinha má fama e o
proveito também não era lá grande coisa. As dificuldades e incertezas da
carreira, a par de um espírito boémio e andarilho, levaram Mário Alberto a
outras incursões. «Fui bailarino cómico, na Turquia. Dançava com o Humberto
Cruz, bailarino mesmo, uma espécie de Pauliteiros, que apresentávamos como
dança popular portuguesa». Também passou pela música. «Fui contrabaixista do Velez de Lima e o seu Conjunto de Ritmos
Tropicais. Mas como tocava muito mal, deixava as cordas muito largas para
não se ouvir o som. E tocava maracas, mas sem nada lá dentro. Era um músico
gestual». Também lavou pratos e foi empregado de bar na Holanda e em França.
«Há gente que fez o mesmo mas, quando voltou, disse que esteve lá fora a
estudar teatro, literatura ou expressão corporal».
Por entre figurações no teatro e no cinema, Mário Alberto
descobriu por essa altura que a sua verdadeira vocação nos fantoches era a cenografia. «Comecei como ajudante dos irmãos Martins,
Hernâni e Rui, a lavar pincéis». Por Lisboa, com destino a S. Carlos, passavam
então grandes cenógrafos italianos que faziam escola. «Aparelhavam-se os panos
e pintavam-se os cenários de pé, com pincéis de cabo alto. Era essa a escola
italiana». Eram os tempos dos cenários de papel e pano pintado. Hoje, os jovens
formados em cenografia «sabem fazer maquetes mas não as sabem reproduzir. É um
trabalho muito duro». Também por esse motivo, «a construção da cenografia é
mais volumétrica, à base do desenho de luzes». Mas é a pobreza de recursos que
leva grande parte dos grupos independentes a dispensarem o cenário e o
cenógrafo. «Os cenógrafos viviam bem quando havia teatro de revista, faziam
figurinos, maquetes e executavam os cenários». Mário Alberto pertence à última
geração desses cenógrafos. Convidado para fazer a cenografia da próxima revista
no Teatro Maria Victória, Mário Alberto convidou por sua vez os parceiros da
sua geração artística para ilustrarem no palco as suas concepções de figurinos,
maquetes e cenários.
Mário Alberto é o último resistente do Parque Mayer mas
não tem saudades da época de ouro da revista, porque esse era o tempo em que a
Censura, para além dos textos, também vigiava e cortava os cenários. «Uma vez,
tinhamos uma empresa que fornecia adereços de pele para os figurinos e, como
permuta, reproduzíamos a fachada da loja no cenário. A empresa era a Estrela ML
e a Censura cortou o cenário por considerar que ML era marxismo-leninismo e a estrela fazia parte da emblemática da
foice e do martelo».
E a mesma Censura que cortava as notícias sobre os ballet-rose do regime revelava-se
puritana em relação ao corpo. «Era frequente, no guarda-roupa, ter que
acrescentar uns folhos para alargar o soutien
ou tapar o umbigo». De 25 para 26 de Abril de 1974, a revista com cenários
e figurinos de Mário Alberto em cena no ABC acrescentou uma «Parra Nova» ao
título de «Tudo a Nu». Nesses tempos, Mário Alberto participou na ocupação do
Sindicato, na fundação de companhias como o Adóque e A Barraca. «E fui eu quem
pintou a faixa de pano para a fachada da primeira sede do PCP. Tenho muito
orgulho nisso».
Cenários
Cidadão particular e livre, conhecido em Lisboa inteira
pelo seu humor e irreverência, Mário Alberto desconfia do poder. Os governos em
geral são maus e o pior de todos é sempre o último. «Nunca vi o Guterres num
espectáculo. Será que ele leu algum livro de poesia? Penso que só deve ter lido
o Breviário», diz com ironia. Para o actual primeiro-ministro, Mário Alberto
desenharia assim um cenário em tons de roxo e preto, «tipo semana-santa». Em
relação à oposição, o cenário não é mais benevolente. Para Durão Barroso, o
cenógrafo não vê nada de melhor que «um campo de cebolas» e para Paulo Portas
sugere uma barbearia. «O Portas precisa de mudar de penteado. Ou uma crista à punk ou três cabeleiras, como Almeida
Garrett, para usar conforme as circunstâncias». Quanto a Carlos Carvalhas
colocava-o num «trigal, cheio de papoilas», cenário adequado à «falta de
agressividade» do líder comunista.
Para Alberto João Jardim, o cenário idealizado por Mário Alberto seria o de
«uma ilha a afundar-se e ele, lá no alto, a dizer disparates».
Seguindo uma moda corrente, Mário Alberto considera que
na sociedade portuguesa estão formadas diversas parcerias naturais de «Acorrentados».
Numa delas juntaria «o padre Melícias, D. Duarte, José Hermano Saraiva e Artur
Albarran, acorrentados a Teresa Guilherme». Numa outra reuniria todo o Conselho
de Ministros, acorrentado a Lili Caneças no cenário de uma ponte maquinável. «Há
uma semana, ainda abriria uma excepção para Ferro Rodrigues. Mas agora que ele
quer o Guterres como Presidente da República, também deve ter, como os outros,
a ponte que merece».
Nenhum destes cenários se compara, porém, ao que
Mário consideraria o projecto da sua vida. «Pintar o Cristo Rei - o Zorba
de Almada, como lhe chamou o O’Neill - às riscas horizontais, ao som do hino da
Maria da Fonte, com o Luiz Pacheco, meu velho amigo e grande escritor vivo,
vestido de cónego, a benzer o monumento com água do Tejo». Não estamos a falar
de um grande disparate, quis saber o jornalista. «Um grande disparate é
gastarmos milhões de contos para construir novos campos de futebol, quando os
estádios que há estão vazios, num país que não tem dinheiro para escolas e
hospitais. Tenho dito».
Ementa
Mário Alberto aceitou o convite do Diário Económico para
almoçar e sugeriu como cenário para o almoço La Brasserie de l’Entrecôte, na Rua do Alecrim, em Lisboa. O prato
é único, entrecôte de boi, por estes
dias uma opção de risco, e a escolha limita-se ao mal ou bem passado. O molho é
óptimo e não esconde a boa qualidade da carne. Para beber, optámos por Quinta
das Cerejeiras Reserva, um tinto com história da região de Óbidos.
A meio do almoço, o Mário perguntou: "Ó João, o convite dá para mandar vir outra garrafuncha?" Resposta: "Ó Mário, por quem é".
A meio do almoço, o Mário perguntou: "Ó João, o convite dá para mandar vir outra garrafuncha?" Resposta: "Ó Mário, por quem é".
Por João Paulo Guerra, Diário Económico, 15 de Março de 2001
Fotos de João Paulo Dias
Homenagem da
CML ao cenógrafo Mário Alberto;
Teatro Nacional D. Maria II,
Teatro Nacional D. Maria II,
28 de Janeiro de 2008; atribuição ao cenógrafo Mário
Alberto, pelo presidente da Câmara de Lisboa, da Medalha de Mérito Cultural.
Elogio do homenageado Mário Alberto,
Por João Paulo Guerra
Mário
Alberto. Há palavras para definir e representar este Homem.
Generoso,
liberal, franco, apaixonado, sensível, desprendido, independente, verdadeiro,
seguro, leal, sincero, autêntico, vernáculo, afectuoso, fraternal, solidário,
recíproco, solícito, propenso, especial, particular, colectivo, comovido,
comovente, integral, imprescindível. Porreiríssimo.
Inquieto,
alvoroçado, travesso, exigente, insatisfeito, satisfeito, tolerante, franco,
entusiasta, fervente, convicto, arrebatado, impulsivo, romântico, feliz,
fascinante. Malandro.
Prodigioso,
mágico, fantasista, inventor, inventivo, imaginativo, fantasiador, sonhador,
engenhoso, inovador, criador, gerador, fecundo, sábio, lúcido, trabalhador,
admirável, bom, melhor, óptimo, superlativo, absoluto, simples, substancial,
sólido. E líquido.
Viajante,
andarilho, andante, passageiro, aventureiro, conquistador, diurno, noctívago,
sedutor, boémio, conversador, comunicador, vivente, sobrevivente, camarada,
Constituinte. Amador.
Militante,
praticante, interveniente, cúmplice, cooperante, renovador, resistente,
revoltado, insubmisso, rebelde, indomável, guerrilheiro, lutador, libertário,
livre, disponível, espontâneo, inconformista, visionário, sonhador, utopista,
subversivo, revolucionário. Irreversível.
Irreverente,
excessivo, desmedido, exorbitante, transgressor, irrequieto, turbulento,
buliçoso, bebedor, comedor, pecador, descarado, provocador, frontal, crítico,
agitador, polémico, irónico, sarcástico, satírico, zombeteiro, certeiro,
gozador, impertinente, intenso, implacável, demolidor, incorrigível,
reincidente, consequente, fulgurante, surpreendente, magnífico, exuberante.
Festivo.
Inconfundível.
Exclusivo. Excelente. Único. Amigo. Imenso Amigo.
Lisboa, Teatro
Nacional, 28 de Janeiro de 2008, atribuição ao cenógrafo Mário Alberto, pelo
presidente da Câmara de Lisboa, da Medalha de Mérito Cultural
3 comentários:
Não o conheci pessoalmente, mas devia ser, pela entrevista, tudo o que disseste..."substancial, sólido. E líquido."
Grande entrevista como sempre.
Grande Abraço João.
Bem hajas por nos trazeres de volta o Mário Alberto, mesmo se só por breves momentos, grande boémio do Parque Mayer, artista e escritor libertário, político vermelho por dentro e por fora.
Abraço
António Melo
Conheci muito bem o Mário. Cheguei a colaborar como seu assistente numa peça no São Luís. Foram os momentos mais engaçados da minha vida. Era um ser fascinante, cheio de histórias que nunca mais acabavam e quando estavam prestes a acabar tinham o dom de as reinventar. Temos todos muitas saudades do Ti Mário e sobretudo das pessoa como ele. Parece que de repente se eclipsaram todos...
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