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quinta-feira, 30 de junho de 2016

Faz de conta que é a mina

Reportagem de João Paulo Guerra, TSF, sonorização de Paulo Castanheiro, no original áudio,
9 de Julho de 1993.
Fotos de António Cruz, datadas de 2012, cedidas pelo autor para ilustrar a transcrição da reportagem radiofónica

O quadro fixa um tempo e um lugar parados no tempo, à esquina dos anos 60 para a década de 70. Freguesia do Barco, local da Recheira, perto da nascente do Zézere, à boca das minas.
- Apolinária Fernandes: Lá está o marteleiro a furar, não é? Faz de conta que é a mina. O do outro lado está com a escada, que era o ajudante, e aqui estes, faz de conta que são os senhores engenheiros. E por cima lá estão os passarinhos, os coelhos, as árvores…


O quadro pintado por Apolinária Fernandes fixa a memória de um tempo parado. Faz de conta que é a mina. A mina fechou em 1971. Mas nas galerias da memória dos irmãos Fernandes – César e Apolinária, antigos mineiros, e Maria José, antiga funcionária administrativa da mina – ainda circulam vagonetas carregadas de cascalho.
Britador 
E de saudade.
- Apolinária: A inauguração foi em 66 e em Novembro de 71 fechou. Foram só cinco anos.
- Repórter: E agora, já lá vão todos estes anos, podia recomeçar a funcionar?
- Apolinária: Podia sim. E a gente gostava imenso.
- Repórter: E é a senhora, o seu irmão e a sua irmã que cuidam disto?
- Apolinária: Pois, exacto.
- Repórter: Mas é com essa ideia, de que isto um dia poderia voltar a funcionar, ou é apenas para guardar a memória do tempo em que viveram e trabalharam aqui?
- Apolinária: Eu não sei realmente se recomeçam, se não recomeçam. O que se passa é que o meu irmão ficou como guarda aqui da mina. E nós vimos cá de vez em quando fazer a limpeza ao escritório, aos pisos, à lavaria. E também para matar saudades. Porque de facto, tenho saudades disto.

Boca da mina
É como se o tempo tivesse parado na Recheira, conservado pelo hálito gelado da boca das minas no Zézere.
- Repórter: Senhor César, conte-me lá, isto aqui é uma das galerias da mina?
- César Fernandes: É, é, sim. Galeria número 2.
- Repórter: Qual é a extensão?
- César: É capaz de andar aí à volta de 200 metros. Há aí mais, há muita galeria. Tem uma, duas, três, depois uma ali a atravessar o cabeço, também em pesquisas, quatro, para aquele lado há mais duas, quatro e duas, seis, há uma data delas…
- Repórter: Há aqui mais outra, que sai daqui para a direita…
- César: Essa liga lá para diante.
- Repórter: Estas paredes, esta rocha são o quê?
- César: Aqui é onde estão os filões que dão o estanho.
- Repórter: Mas diga-me: isto não está esgotado? Continua a haver minério?
- César: Continua, continua a haver minério.

Já lá vão 22 anos, desde o fecho em 1971. Mas César Fernandes ainda vê o traçado das minas no escuro das galerias.
Vértice de um triângulo com a Argemela e a Panasqueira, as Minas do Zêzere, na Recheira, foram um parente pobre do couto mineiro da Beira Interior. Os filões de estanho foram descobertos nos anos 40 por César Fernandes, já no rescaldo da corrida ao Volfrâmio. Ali perto, perdidos na memória dos tempos, romanos e mouros já tinham escavado o solo, à procura dos tesouros da terra.
- César: Há até uma mina, assim muito estreitinha, feita por eles, pelos mouros.
- Repórter: E o que é que eles procuravam?
Galeria
- César: Os mouros era ouro. Há uma mina que tem um poço, desviado para a Argemela, aí com uns 16 metros de fundura, com um filão largo…
- Repórter: Um filão de… estanho?
- César: Eles exploravam também estanho mas aquilo havia de ser outro material qualquer, ouro, ou prata, ou qualquer coisa assim.
- Repórter: E esta mina nunca tinha sido explorada antes?
- César: Esta aqui, não, nunca foi explorada por ninguém.

Nos anos 60 chegaram à Recheira os alemães Walter e Karl Thobe. Investiram nas Minas do Zêzere e ganharam, pelo menos, um lugar no coração e na memória da família Fernandes.
- Apolinária: O Senhor Walter tratava os operários como família. Tal e qual. E também não podia ver um animal mal tratado. Tínhamos dois ou três cães e ele não queria que ninguém lhes tocasse. E então, como ele era assim para os animais, fizemos-lhe uns versos que eram assim:
Ó Recheira do Zêzere // tantos anos esquecida // Estimada pelo senhor Walter // Que te dá tanta guarida. // Para os animais é um santo // Trata-os com muito amor // Nunca eles pensaram // Ter assim um protector. // Adeus ó linda Recheira // Do senhor Walter o encanto // Se ele agora te deixasse // Desfazia-se tudo em pranto.
Casa do cão
 
- Repórter: E acabou por deixar?
- Apolinária: Pois foi.
- Repórter: E quando a mina fechou e eles deixaram isto, foi mesmo assim, esse pranto?
- Apolinária: Ficámos todos tristes. Mas tínhamos outros versos. Era assim:
Já lá vem o senhor Walter // As minas inaugurar // Os filhos que o acompanham // Para a obra continuar. // Aos senhores engenheiros // Um parabém queremos dar // Que nunca se arrependam // de connosco trabalhar.

Walter e Karl Thobe ficaram com um nome nas ruas da memória da Recheira. As Minas do Zêzere fecharam em Novembro de 1971, porque as regras da economia são mais fortes que as leis do coração. Os filões de minério ainda brilham, no escuro das rochas da Recheira. Mas a cotação do estanho não justifica a exploração da mina. As pegas de fogo já não soam nas artérias da Recheira. Mas o coração da mina não parou. Foi o tempo que suspendeu a sua contagem, preso a uma memória mais viva e mais forte do que as leis da oferta e da procura.
Correia de transporte
- Maria José Fernandes: Portanto, eram estas as folhas dos trabalhadores, que depois eu enviava para Lisboa, consoante os dias que faziam, que não faziam. Ficou cá tudo.
- Repórter: Como era o salário deles?
- Maria José: Bom, nessa altura já era um salariozinho, digamos bom, para aquela altura.
- Repórter: E o seu salário, também era bom?
- Maria José: Era, consoante aquele tempo, não podia ser mais.
- Repórter (folheando as folhas de salários): César Gil Fernandes. Este aqui é o seu o irmão?
- Maria José: É sim. É o meu irmão.
- Repórter: Ora vamos lá ver então, as despesas. Almoço que se deu ao senhor engenheiro Barros. Um almoço, 22 escudos e 50 centavos. Almoçava-se barato.
- Maria José: Pois era assim naquele tempo. Agora é assim. É tudo diferente.
- Repórter: E aqui nesta parede temos… o mapa da mina, é?
- Maria José: É sim, o mapa.
- Repórter: E ali naquela outra parede temos uma lagartixa.
- Maria José: É verdade. Já outro dia ali andava.
Torvas

A memória das Minas do Zêzere vai pelos dedos de Maria José Fernandes nas páginas amarelecidas de uma contabilidade que fechou sem balanço. Como se fosse ontem, no pequeno escritório da Recheira alinham-se as pastas do Deve e do Haver, o dia-a-dia do trabalho.
- Repórter: Como era o trabalho aqui, debaixo da terra, com esta escuridão, esta humidade?
- César: Isto era duro, sabe? Era um bocado duro. Eu vinha cá três, quatro vezes acima… Olhe, isto aqui é minério. Um filão que dá o estanho. Isto era desmontado a tiro, com gelamonite, e depois era carregado aqui, à pá, e era transportado em vagões.
- Repórter: Esta água toda que há aqui no chão…
- César: É humidade que escorre. É muito húmido. Olhe, aqui há outra… aqui para a esquerda.
- Repórter: Isto é quase como um labirinto. Mas os senhores conheciam isto, não havia o perigo de se perderem?
- César: Alguns perdiam-se. Eu é que não me perco porque eu é que mandei fazer isto tudo. Desde o primeiro tiro até agora, conheço isto tudo. Onde é que estão os poços. Olhe, agora aqui há outro buraco. Esta mina aqui é que é perigosa. Lá dentro caem blocos de pedra. É um bocado perigoso.
Casa da administração e armazém

César Fernandes, o guarda do coração e das artérias das minas do Zêzere, um coração que bate no peito da família Fernandes: César, antigo alfaiate, e as irmãs, Apolinária e Maria José, antigas costureiras, entregaram-se à mina na sequência de uma tragédia familiar que lhes levou o pai, enlouquecido, para o Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, na altura conhecido por Rilhafoles. Jaime Fernandes, o pai de César, Apolinária e Maria José, foi internado em 1938 com diagnóstico de esquizofrenia paranóica e nos últimos anos de vida começou a desenhar e pintar como modo de terapia. Morreu em 1969 e está representado em diversos museus do mundo.
A vida continuou na Recheira até que a mina fechou e o tempo parou. Mas os três irmãos encontraram nas galerias da Recheira um sentido para a vida parada no tempo, na aldeia do Barco, alimentando o sonho da reabertura da mina e da procura os tesouros que as minas encerram.
- Apolinária: Por exemplo, os engenheiros, ou eu, ou qualquer pessoa, que vá à sua fazenda e queira saber se a fazenda tem qualquer minério, ou estanho, ou volfrâmio, ou ferro, eu ali em poucos minutos, com uma bacia com água, eu sei. Não precisa de ir para uma lavaria.  Eu com uma bacia e com água, eu manobro aquilo e fica o produto no fundo.
- Repórter: Como é que se distingue?
- Apolinárias: A terra vai saindo, juntamente com as pedrinhas, e eu faço aquelas manobras com a bacia com água, fica apurado no fundo o material que há na terra. Se há, fica, se não há, não fica.
- Repórter: Seja qual for o minério?
Mesas
- Apolinária: Seja qual for. Ou ferro, ou ouro. Eu na minha fazenda até lá encontrei ouro.
- Repórter: Encontrou ouro?
- Apolinária: Encontrei sim. Eu era miúda e nem sequer disse à minha família. Fui ao ourives e ele por uma bola de ouro deu-me um anel. Eu queria era o anel. Eu agora já estou reformada. Mas aquilo era o meu encanto. Arear. Gosto imenso de encontrar aquelas coisas lindas na terra. Lindas e de valor. Eu trabalhava de costura porque era a minha necessidade. E tinha que trabalhar na vida, porque a minha mãe não me pôde dar um curso. Porque ouve uma fatalidade na nossa vida. Na vida da minha mãe. Tivemos que trabalhar de pequenas. Mas tínhamos outras coisas na ideia. Eu o que queria era escrever e pintar. Mas ninguém me ajudava. Nem a família me perguntou alguma vez o que é que eu queria ser na vida.
- Repórter: O que é que queria ser na vida?
- Apolinária: Esse sonho desapareceu-me e dá-me pena porque eu toda a vida quis estudar. Eu queria… ser escritora. Porque ainda hoje só me dá para escrever, escrever…
- Repórter: Mas escreve. Faz poemas, não é?
- Apolinária: À minha maneira porque eu não tenho cultura. Mas quando fui para as minas gostei muito, porque era aí que eu gostava de andar, atravessava o campo…
- Repórter: Foi esse gosto pela natureza que a levou a pintar os quadros que tem aqui na vossa casa?
- Apolinária – Foi sim.
- Repórter – Mas já houve exposições, com quadros seus?
- Apolinária: Fiz uma exposição na Covilhã e fiz outra aqui, no Barco. Vendi tudo. Vendi-os baratos porque comecei a trabalhar com material mais ordinário. Agora é que já passei para pastel de óleo.
Primeira vista
- Repórter: E de onde é que lhe vem esse gosto pela poesia e pela pintura? Do seu pai, o pintor Jaime?
- Apolinária: Nasceu comigo. Desde pequena tinha essa ideia mas não me revelava.
- Repórter: Por exemplo, aquele quadro, a menina com o cãozinho ao colo…
        - Apolinária: Aquele é como se fosse eu quando era pequena. Porque eu era assim. Com os olhos azuis. Bom, olhos azuis, ainda os tenho. Mas aquele não o vendo.
- Repórter: É como se fosse a sua memória?
- Apolinária: Sim, aquele quadro é a minha memória.

Memória de Apolinária Fernandes. Memória de uma vida com as voltas trocadas entre as galerias das Minas do Zêzere e a galeria de quadros ingénuos, de uma exposição permanente nas paredes da velha casa da freguesia do Barco.
Filha de Jaime Fernandes, o pintor que transportou para a tela as paixões da alma de uma vida de 30 anos atrás dos muros do Hospital Miguel Bombarda, Apolinária guarda nas cores dos quadros o registo de um tempo parado. Desde 1971 o tempo parado ainda vive na memória dos seus irmãos, César e Maria José. Um tempo gravado no estanho das Minas do Zêzere.
- Apolinária: Levavam as vagonas lá para onde faziam a pega de fogo; depois traziam-nas cheias, depois vinham, despejavam-nas aqui, o moinho britava isto tudo, seguia na transportadora para o outro moinho que lá está em cima, depois ia para o crivo… Era assim…  

Separadora, após o saque      
Minas do Zêzere, o destino enredado nas teias das leis da economia. Mas não foram só as minas que pararam no local da Recheira. Foi também o tempo. O coração da mina ainda bate, ligado à máquina da vida pela memória de César, Apolinária e Maria José Fernandes.
Moinho primário, após o saque
- Apolinária Fernandes: Lá está o marteleiro a furar, não é? Faz de conta que é a mina. E por cima lá estão os passarinhos, os coelhos, as árvores…
 
- Repórter: E ali na parede temos a lagartixa.
- Maria José: É verdade. Já outro dia ali andava…
 
Reportagem 
de João Paulo Guerra, montagem de Paulo Castanheiro, no original rádio, TSF, 9 de Julho de 1993.
Fotos datadas de 2012, da autoria de António Cruz, um amador que ama e fotografa o seu País, e que amavelmente as cedeu para ilustração da transcrição da reportagem radiofónica. 
 
Jaime, pintura
A mina foi saqueada – equipamentos, restos de minério - e vandalizada, em 2013, como pode ver-se nas fotos de António Cruz
A freguesia de Barco foi extinta em 2013, associada a uma outra na União das Freguesias de Barco e Coutada. 


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